top of page

A jornada de 53 km a pé

  • Foto do escritor: Lucas Ghisleni
    Lucas Ghisleni
  • 2 de jun. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 3 de set.


Na minha preparação para o caminho de Santiago de Compostela, pesquisando aspectos históricos, me deparei com o Codex Calixtinus: um livro atribuído ao Papa Calixtinus II, mas que foi verdadeiramente escrito por um erudito francês, no período entre 1138-1145. Um guia detalhado para peregrinos do século XII!


Após uma semana de peregrinação, passando da região do País Basco para região de Castilla y Leon, a placa da divisa trazia as etapas descritas no código. Eu, meu pai Plinio, meu tio José e meu primo Augusto – os três grandes companheiros que me acompanhavam – conversamos sobre as longuíssimas distâncias descritas na placa. Expus meu pensamento de que os peregrinos do passado podiam realizar aquilo, uma vez que não caminhavam por esporte, ou como passeio de férias, mas peregrinavam por devoção, por fé, em meio a condições muito menos favoráveis ou confortáveis do que hoje em dia.


Diante das afirmações deles de que seria impossível caminhar distâncias como 50 km por dia, me vem o sentimento de que a nossa cultura atual transborda presunção. Olhamos para o passado, para os muitos relatos incríveis e para muitas coisas que não compreendemos, e ao invés de nos fazermos humildes na nossa ignorância nos inflamos na nossa arrogância. Só não dizemos que as pirâmides são impossíveis porque estão de pé!


Isso foi precisamente explicado pelo gênio Leonardo da Vinci: “Pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem a cabeça desdenhosamente para o céu, enquanto que as cheias se abaixam para a terra, sua mãe.”


Decidido a superar meus limites, me despedi dos meus nobres companheiros no começo da tarde, e me vi pela primeira vez de fato sozinho, com destino incerto, hospedagem incerta, caminho imprevisível. Observei duas coisas acontecerem.


A mente se agitou como em nenhum outro momento. As diversas incertezas e o meu receio diante delas produziram muitos pensamentos, muitas estratégias de como agir. Sem internet, sem reserva, pouco tempo para uma jornada tão longa.

A minha mente começou a ser arrastada pelos pensamentos como não havia acontecido até aquele momento. Por muitos momentos eu perdi completamente a percepção do ambiente, tão grande era o mergulho na mente nos receios e dúvidas sobre o que fazer.


Até que pensei: “Tu se separou deles e embarcou nessa desafio para caminhar assim? Para ficar ausente e alienado assim? Ansioso e agitado?” Ficou explícito, límpido, ver como a mente teme. A mente busca garantias. O que é isso, senão medo?


O segundo ponto que surgiu foi que sabendo que não tinha muito tempo, comecei a caminhar rápido. Me pus em marcha firme. Caminhando decidido.


Até aquele momento, em muitos dias eu vinha cuidando da maneira de pisar, o equilíbrio da mochila e assim por diante. Aqui, me sentindo cheio de energia, experimentei como em nenhum momento antes, a sensação de “deixar o corpo caminhar”. Essa foi uma grande percepção e insight daquele momento.


Por fim, eu decidi que caminharia até Carrión de los Condes. Eram 3 da tarde e eu tinha 26 km pela frente, sem saber se encontraria lugar para passar a noite ou internet para me comunicar. Mas tinha confiança. E energia.


Então soltei a mente, qualquer tentativa mental de controlar a situação, soltei os muitos pensamentos, as inseguranças. E soltei o corpo, qualquer controle sobre o movimento corporal. Mergulhei com soltura na caminhada. Respiração no seu ritmo natural, desobstruída, e mente tranquila e feliz. Sorriso interno. Nada a ser controlado ou buscado, ou previsto. Apenas caminhar, sem passado e sem futuro.


Com o passar do tempo, a velocidade da minha caminhada naturalmente foi diminuindo. E com isso um terceiro insight surgiu: “a inteligência natural do corpo.”

Comecei a sentir uma dor nas solas dos pés, especialmente nos dedos mínimos, que já estavam frágeis dos dias anteriores. Intuitivamente fui rotacionando e internalizando a pisada, e isso começou a causar dor bem na dobra do dedão.

Então pude ver o meu corpo alterando a forma de caminhar: fui me curvando mais para frente – para aproveitar a gravidade – e arrastando mais os pés, para evitar usar os dedos que doíam. Incrível! Comecei a caminhar cada vez mais semelhante a um velho! Uma vez que essa era uma disposição do corpo que o poupava de esforços maiores, exatamente como se faz necessário com o avançar da idade.

A partir dos 40 e poucos km esse curvar-se ficava difícil de evitar.


A partir disso, comecei a testar a visão de que nos três níveis que nos compõem – mente, energia e corpo -, a mente tem supremacia. Isso significa que o corpo tem os seus processos, que influenciam a mente, porém a mente tem a capacidade de guiar o processo global.


Isso se mostrou verdadeiro porque eu vi que se posicionasse minha mente como na meditação, concentrada, com foco na respiração, ou com foco em alguma oração ou mantra, meu corpo se colocava numa atitude mais firme. Se, por outro lado, eu deixasse a mente solta, à mercê dos pensamentos involuntários, meu corpo também ficava numa atitude de falta de energia. Fui testando isso por todo o caminho.


Houve um momento em que lembrei do grande mestre budista Chagdud Tulku Rinpoche. Ele tinha um corpo frágil, uma saúde débil, e no entanto, teve que realizar o esforço físico imenso de atravessar as cordilheiras dos Himalaias para fugir da morte que viria pelas mãos dos chineses que invadiram o Tibete em 1959. Ele e diversos outros lamas tibetanos, incluindo o Dalai Lama, vivenciaram isso, e precisaram chegar à Índia para encontrar segurança.


Pensando nessa história que muito me comove, eu senti: “se eles realizaram essa travessia tão dura, em meio à neve, fugindo da morte, escondendo-se nas cavernas, com roupas e comidas escassas, com a tristeza de deixar sua terra, casas e familiares para trás, como poderia eu fraquejar, mesmo que por um instante?”


Lembrado disso, eu sentia que poderia caminhar para sempre, o quanto fosse necessário, sentindo vivo no meu coração o amor e a compaixão incomensuráveis, por todas as pessoas, que é a energia que move os mestres no mundo. Energia nos pés e mente tranquila. Assim segui!


Os últimos 6 km percorri recitando o mantra budista da sabedoria, prajnaparamita: experiência incrível, energia completamente presente! Em 45 min cheguei à placa que anunciava a cidade dos Condes.


Na parada para foto o corpo acusou a intensidade. Um estiramento na perna, lombar contraída, os pés “se fundindo” aos tênis, os dedos dos pés abraçados uns aos outros como numa expressão de compaixão mútua. Vagando pela cidade, esbarrei em duas hospedarias lotadas, recebi recomendação de uma terceira — que estava fechada a grades — e acabei por bater na porta do albergue Espiritu Santo às 21:43.


A freira vem braba, dizendo: “eso son horas de llegar?”

Outra freira grita da porta de dentro: “que pasa esa hora, Modesta?”

“Un peregrino!”

Eu disse: “Caminé todo el día. ¿Hay lugar para mi?”

“¿De donde vienes?”

“De Hontanas”

“Por Dios, venga! Mercedes, um peregrino de Hontanas, dicho que paso el dia caminando…”


E assim fui acolhido pelas irmãs Modesta e Mercedes. Se atucanaram por já estarem prontas para fechar tudo, às 22h, hora que ninguém mais entra e ninguém mais sai. Meu nome e passaporte foram para lista do dia seguinte, pois a daquele dia já estava encerrada. A irmã pegou uma tabela de cidades e mostrou: Hontanas-Carrión: 53,8 km.


Irmã Mercedes me apresentou tudo, onde tinha um banho quente, onde tinham mais cobertas caso fizesse muito frio à noite, quase arrumou minha cama pra mim. Me levou à cozinha, onde a irmã Modesta vasculhava a geladeira dizendo: “Deves tener hambre…”


Na geladeira havia um prato deixado por peregrinos dois dias antes, com uma tampa com uma mensagem “para um peregrino que chegar com fome.” Um bocadillo de queso preparado pelas mãos da irmã. Fecharam todo albergue e passaram uma última vez para perguntar se estava bom e desejar bom descanso. Ensinaram onde apagava as luzes e partiram, sorrindo. Não me ocorria nada para falar diferente de “gracias, gracias, muchas gracias”. Só um desejo no coração: agradecer.


Como pude passar das incertezas da noite para estar sentado num refeitório aconchegante, com um banho quente e uma cama quente à minha espera, e uma comida preparada por pessoas que jamais saberão da minha existência? E servida por outras que talvez não me vissem mais? Completamente comovente.


Olhava em volta e via as imagens de Maria, mãe de Jesus, a quem eu havia, ao lado do meu pai, rezado caminhando por 6 dias (pedi pra fazermos uma novena). Pensei: “Isso é Maria viva. Elas são Maria. Maria está viva.”


Não tive dúvidas. Os seres passam. Maria não morre. Jesus não morre. Buda está latente. Sentado paciente. Os seres esquecem. Os seres não veem. Os seres passam. A natureza primordial fica intacta. Por Modesta ou Mercedes, o mundo se revela amor, o mundo se revela pura generosidade. Que sempre tenhamos olhos que veem!


[Texto escrito dias após a experiência ocorrida em maio de 2019. Revisado e lido para mais de 20 amigos que se reuniram para ouvir da viagem, no Espaço Maitri Canoas, em junho de 2019. Revisado pela segunda vez, com inclusão das fotos, em agosto de 2025.]


Posts recentes

Ver tudo
Culpa e liberação

Como me libero da culpa por coisas que fiz? E da preocupação com a imagem que os outros possam ter de mim? Inspirado pela conversa com...

 
 
 

Comentários


 © 2025 por Lucas Ghisleni

Lucas Ghisleni - Professor CEB

 Gramado/RS

Feito com carinho por um admirador

bottom of page